Carta à minha Avó Glória

Acredito no desespero. Na força que me sufoca e me amarra os pulsos na impossibilidade de agir. Acredito no desespero desde a tua partida. Desde que me deixaste nesta ausência-presença tão imprópria de ti. Acredito no sofrimento. Acredito na solidão de um olhar enclausurado no teu rosto. Acredito na dependência. No golpe de misericórdia que a foice da morte impõe quando nos finda o prazo. Acredito na dor. A dor mesquinha e transparente. A dor visível que nos obriga a arrastar o corpo e encarar a vida sem ti. Ainda continua vazio o teu espaço. Como podem dizer que ninguém é insubstituível? Que artimanhas macabras inventam as pessoas para nos levar a acreditar em mentiras. Quem disse que a dor fica mais ténue, quando compreendida? Quem disse que as frases politicamente correctas que me gritavam aos ouvidos no dia do teu derradeiro adeus, me tranquilizavam? Só queria ficar sozinha, a olhar para o teu rosto sereno. Não podia deixar-te partir. Não queria que te levassem sem que tivesse tempo para voltar a dizer-te o quanto te amava.
Acredito na vida eterna. Acredito que Deus colhe na terra alguns dos seus anjos. Enquanto te transportavam vi-te levantar suavemente dessa madeira rude onde te depositaram o corpo. Vi-te renascer. Das costas brotavam duas asas brilhantes como pedaços de diamantes cravejados na coroa de uma qualquer rainha.
Ainda me doem as pedras do caminho. Ainda me soluça o peito naquele arrastar de pés que me obrigavam a encerrar o teu ser apenas na minha memória. Ainda me doem as lágrimas que ainda hoje te choram. Ainda me dói a tua ausência. O teu perfume no meu quarto. A tua voz sábia e humilde, que me repreendia com lições de vida. Foste pilar que suportou as minhas dúvidas. Foste porto de abrigo das tempestades e vendavais que assolavam a porta da minha fragilidade. Ensinaste-me a importância da família, da amizade. A dar-me sem esperar retorno, a fazer o bem, porque quando fazemos o bem, encontramos a paz de espírito que tanto procuramos sem encontrar.
Perco-me de novo entre a multidão de lágrimas e de desespero. Vejo apenas olhares de dor. O cheiro das velas, da terra, e a tão próxima presença do fim. Não quero deixar-te. Não quero perder-te de vista. Quero pegar-te ao colo e levar-te para casa. Ninguém me obedece. Ninguém ouve os meus gritos. A minha voz já não te alcança. Cobrem-te o corpo com um lençol de madeira, e a pouco e pouco vejo-te descer entre os sete palmos de terra que nos separam. Não. Não posso deixar que te sepultem para toda a eternidade. Aos poucos cai a terra e com ela sinto-me a sufocar. É como se tivéssemos as duas nesse caixão fechado sem réstia de luz. Abraça-me avó. Não me deixes. Mas tu não me respondes. Não me ouves. Existe apenas silêncio. O silêncio da tua morte na minha pele, como uma brasa em chama que me queima e deixa bem marcada a cicatriz.
Acredito na vida eterna. Acredito que és um anjo que repousa docemente nos dedos de Deus.
Até sempre minha Avó.
Comentários