Monólogo esquizofrénico...

A cena retrata uma pequena sala. Ao fundo um sofá, um candeeiro de pé alto e uma mesa com o tampo apinhado de papéis e um cinzeiro.
Fernando – Quantas vezes debrucei o meu cigarro neste cinzeiro e fiquei impávido a olhar a luz do candeeiro? Sei lá. Inúmeras vezes acordo neste sofá com os olhos hirtos, queimados pela luz pálida do meu candeeiro. Fico a olhar a luz, à procura de respostas. Respostas às minhas confidências, aos meus anseios. Neste papel imundo do meu deboche, transpira ainda a minha fugaz imaginação decadente do puritanismo medíocre da sociedade. Mas e quem sou eu? Apenas um critico analítico da minha própria pessoa. O meu nome é Fernando, vivo neste velho buraco a que chamam apartamento. Na minha modesta opinião, não se devia chamar apartamento mas compartimento. Os arquitectos de hoje, não projectam edifícios, mas caixas de fósforos com janelas minúsculas de onde nem o sol consegue espreitar. E logo eu, que toda a vida sonhei com um espaço aberto, propenso a deixar-me respirar. Ou até uma pequena casa com muitas janelas e uma enorme varanda debruçada sobre o mar. Que falta de sorte. Os livros já não me matam a fome quando escrevo para sobreviver. Mas a ignorância das pessoas incultas redobra-se de dia para dia, e deixam-me escanzelado, faminto, dependendo desta mísera côdea de pão bolorento e que dura há mais de uma semana.
Ricardo – (o mesmo individuo comum tom de voz mais sarcástico) Cala-te! Já não posso ouvir as tuas sucessivas angústias.
Fernando – Quem está ai? Ricardo? Álvaro?
Ricardo – Claro que é o Ricardo. O Álvaro é demasiado sensato e sonhador para te mandar calar. (acende um cigarro). Tanta Metafísica apunhalada pela tua vil cultura de hipermercado.
Fernando – Insultas-me?
Ricardo – Não aprendes Fernando. O mundo é um átomo saltitante no quadrante do tempo, e quando reunimos as intempéries numa mão, se as jogarmos ao vento elas eclodiram sobre as nossas cabeças, como gotas de chuva ácida de uma nuvem carregada de químicos.
Fernando – Não percebo.
Ricardo – A noite e o dia não são como dois amantes cientes de um amor impossível, são apenas causa-efeito. E quanto mais desprezas o dia e te lamentas na noite, mais dias negas à tua existência corpórea. Menos prazer, menos loucura, menos vícios exuberantes que nos sugam a própria alma, rumo ao nirvana absoluto. O dia foi feito para as estirpes materialistas desanuviarem as mentes de uma noite longa, de deboche, de prevaricação. Diz-me Fernando, há quanto tempo não estás com uma mulher?
Fernando – Não tenho atributos físicos para que alguém caia de amores por mim, e para amores fáceis e esporádicos não tenho dinheiro. Ai que saudades do meu querido amorzinho, as cartas de amor ridículas que lhe escrevi vez após vez, com o mesmo fervor escorrendo-me do coração por entre os dedos. A lucidez da alma penetrada pela espada cruel da paixão louca, o toque exacerbado da mão que toca sem tocar.
Ricardo – Ah! Ah! Ah! Tal como eu pensava as tuas dores, os teus males são carências de uma cama ardente.
Fernando – Não sejas ordinário, Ricardo. Um homem da minha idade já não se resume apenas a uma noite passada em cama alheia. O meu mal é falta de companheirismo. Vou morrer em breve com uma pesada consciência e terrivelmente só.
Álvaro – (o mesmo individuo mas com um tom de voz doce quase sonhador) Pois é a velha história é mais vergonhoso um homem sucumbir na dor sozinho, do que numa ardente noite de amor….
Fernando – Álvaro?
Álvaro – Sim Fernando, sou eu. De que vale gritar as zombarias da vida, apontar o dedo à multidão, se no fim ela nos abandona, nos ignora descrente de que realmente um dia existimos no seio dela.
Ricardo – Álvaro, o poeta perdido na agulha do tempo, vivendo de ilusões medíocres, nas quais jura ser feliz.
Álvaro – Ricardo, o ignorante futuro-científico que só sabe experimentar camas alheias.
Ricardo – Vejo que hoje sugaste a língua viperina da tua mais hedionda deusa grega, Hera.
Álvaro – O que o tempo enterra é apenas passado recalcado, absoluto e por vezes amargura. E o teu passado revela-te uma pessoa frustrada à mercê da crítica alheia, na qual te encobres como ser superior, como um Zeus. Mas no fundo és um mero prometeu agrilhoado a um presente decadente.
Ricardo – As tuas filosofias baratas não me intimidam. Vivo da noite não o nego. Vivo das odes fantásticas que declamam nos bordéis da avenida. Vivo dos jogos pérfidos das damas da noite. E não me arrependo de sugar da vida o seu mais apreciado sumo. O suco do prazer a escorrer-me pelos lábios num nirvana absoluto.
Fernando – Parem! Estão a deixar-me louco. As vossas vozes ecoam na minha mente como um eco dilacerante que me queima o pensamento e me atiça a loucura de às vezes ser quem já não sou.
Ricardo – De seres quem já não és? Tu que nem és homem, nem simplesmente um ser. És apenas a mera consciência de alguém que te criou a seu bel-prazer por pura diversão. Como uma marioneta desconexa com o palco do seu universo.
Álvaro – A consciência é a voz da alma que translúcida alcança a existência agrilhoada num vulto corpóreo que lhe completa o ser.
Ricardo – Vendem-se ao desbarato filosofias baratas. E tu, Fernando, só te chamas mesmo Fernando? Não tens apelido de pai nem de mãe? Pareces-me uma metáfora inequívoca apologista da demanda de um Deus que só te quis sacrificar. Estou cansado, verdadeiramente farto desta conversa de doidos. Vou desanuviar o corpo e a mente…
Álvaro – Eu fico. Não quero abandonar este pobre ser que se desmorona face à rugosidade do tempo…. Pressinto que se torna apoteótico o momento como que um homicídio suicida….
(…)
Fernando – Já sinto o corpo esgotado. É como se estivesse a perder a racionalidade. Sinto-me desfalecer. Pressinto em mim o arrepio da morte. A derradeira face fria da fronteira para a imortalidade. Mas antes preciso de dissolver alguns intelectos antes do derradeiro desfecho. Quanto ao Ricardo, nunca mais o senti por perto, dizem que morreu de sífilis, numa morte tão dolorosa e solitária. O Álvaro, levei-o comigo para a campa fria. Suicidou-se no dia da minha morte. O Bernardo que vivia como clandestino foi enterrado comigo numa cena tanto arcaica como grotesca. Apesar de morto, há algo em mim que se liberta. A cada ser humano é dada uma semente de sabedoria que se deve cultivar com todo o afinco e interesse. E eu acabei por cultivar a minha árvore a dar variados frutos. Neles me edifiquei como ser supremo, de vários alter-egos. Eu sou como um prédio sobrelotado, polvilhado de pessoas à janela, que a pouco e pouco vou fechando para todo o sempre.
O pano fechou-se. E fico apenas eu, uma coisa sem ser. Durante anos fui acarinhada pela mão dócil do Fernando, o Pessoa. O homem das letras, que cuspia poemas em cada baforada de ar que expelia. Eu sou pertença dele. Uma pertença ilusória e abstracta. Um misto de incoerência que te deixa criar um mundo de personagens exemplares, de uma cultura vincada na pele de um mundo próprio, coerente e atractivo, que não nos crítica mas nos obedece, acarinha e nos toca interiormente e nunca nos deixa sozinhos. O homem moderno tende a possuir-me porque teme a solidão, mas luta por ela, quando delega para segundo plano a família, os amigos, e se dedica apenas ao sucesso profissional. E por entre as luzes do cansaço flamejante nascem no seu próprio cérebro seres ilusórios que lhe vão preenchendo a solidão. E acabam por vezes cruelmente sós, a falar com um espelho num reflexo incrivelmente polido deles próprios. Mas com o Fernando era diferente. O Fernando usou-me como bode expiatório de uma criação desmedida que ele próprio tinha dificuldades de estancar e perceber. E ora se entregava a um turbilhão louco de criação pura do seu próprio eu, ora desprendia amarras rumo a outro palco criado tão minuciosamente como qualquer heterónimo que tão carinhosamente deixava florir no seu próprio íntimo. E é isso que eu sou do Fernando, a sua tão polémica, questionada e estratégica…. Esquizofrenia…

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