In memoriam do meu querido Tio Eurico

 


Mais uma noite em que visitam a minha alma os pássaros negros, que em voos ininterruptos, despertam esta calada saudade, atada em prantos nos desassossegos da minha alma, nestes 16 anos da tua "partida terrena" meu querido Tio Eurico... 


Talvez o tempo não seja apenas um embuste desajustado ao credor ativo da morte. Talvez o tempo sirva apenas para marear a dor, intercalada entre a saudade que a jorros contidos sai do peito numa liberdade punitiva das vivências, que entre vigílias vivem os acordados. Talvez ainda acorde a ausência que me fere a cada dia, quando as memórias de ti me assolam compulsivamente, numa náusea desenfreada dos momentos que contigo não vivi. Há tantas vivências paralelas em nós mesmos, vínculos de uma distração doentia que entre tantas ousadias, nos retrai ao medo das memórias. Não tenho receio de voltar aos quartos da memória, de revisitá-los vez após vez. Porque a vida foi sempre a partilha de tantas horas que por vezes o dia nos nascia na pele na noite engolida pela amena cavaqueira de uma vida desiludida de ilusões. Quantas vezes o caminho se fez passo a passo, num passo por vezes embargado em choro e cansaço, que na voz de um fado, exorcizávamos de nós. Tenho tanto de ti ainda marcado no aflorar da pele. Fomos tantas vezes fim e início de uma orquestra de risos cúmplices de nós dois. Aprendi contigo que a vida por vezes é mais mãe que madrasta, mas que até um dia as madrastas precisam de descansar a máscara da sua malvadez e nos dar tréguas às amarguras do corpo. E nessas horas eu via no teu rosto o sorriso aceso de uma peça pueril e inocente, de uma força revigorante e pungente de quem tinha guardado as más memórias a sete chaves e se predispunha a aproveitar o momento. E hoje é essa paz que trago no peito junto da memória do teu rosto esculpido em mim a cinzel. O sorriso ameno de quem guardava sempre mais uma gargalhada na algibeira de tantas histórias antigas que pareciam saídas de um filme de comédia. E nessa história eu me perdia noutras histórias de personagens que aprendi a amar sem conhecer. Nessas histórias eu viajava contigo sempre em novas aventuras que o tempo e a severidade da vida te impediu por vezes de viver. Não quero apagar o teu riso da minha mente, entre o rosto que marcava convincente a passagem de um tempo em si duro. Mas de ti guardo tão poucos lamentos, preferias mil vezes guardar os sorrisos de um curto tempo do que as lágrimas de um tempo prolongado e sombrio. E quem me dera poder ter sido mais, contigo. Ter podido sorver mais da tua alma, que serena de sofrimento, abarcava tanto conhecimento e uma justeza memorável. Quem me dera poder polir as pedras da calçada de novo de braço dado contigo. Cantarolar as horas na melodia pura de um fiel amigo, que me defendia das injustiças da vida. A vida é feita de presenças que se tornam voluntariamente ausentes, e de tantas forçosas ausências que queríamos que fossem eternamente presentes. Mas a verdade, é que passados 16 anos sobre a tua ausência física, ainda hoje eu te sinto constantemente presente, nas entrelinhas da minha vida. Deambulas pelos meus sonhos, numa saudade que não se inibe de te chamar inconscientemente no meu peito. E como dói a saudade de quem perdemos demasiado cedo. Havia tanto de ti para dar. Havia tanto de ti para ser ainda descoberto e valorizado por nós. Mas Deus, decidiu que os teus pés já não aguentavam mais a dureza do caminho e costurou-te em segredo, de mansinho umas asas, que te desagrilhoassem a alma deste cárcere corpóreo e que se cumprisse o teu final destino, a prometida liberdade personalizada  num “Ícaro” que sabendo o risco da queda, ousou desmedidamente voar…

Espraia as tuas asas, meu querido, e abraça o Céu que te foi prometido, como reconhecimento da pureza do teu coração. Que a tua alma brilhe no reflexo deste amor gratuito e eterno, de seres luz na escuridão do nosso tártaro terreno, onde a memória não trai o que não nos é efémero. Serás sempre o habitante permanente das lembranças que o tempo se encarrega de guardar no nosso disco interno, entre o que nos é mais sincero e impossível de modificação. Merecias o mundo, mas o mundo foi incauto e distraído, e hoje o céu se alegra por ter resgatado da lama terrena uma alma pura, por quem as lágrimas de saudade que vão caindo, fazem florir as flores do caminho, onde residem em silêncio os sonhos da tua frágil liberdade.


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